CAPÍTULO 1

As cenas descritas a seguir se iniciam em paralelo ao capítulo 10 “Beijo” do livro Luz e Sombra – Imaculada.

Este conto é um complemento para o 1º livro da série.

“Você gosta dela…”

Incrível como aquelas três palavras foram o suficiente para deixar Guerrard irritado.

Já estava irritado com aquela hipótese levantada por Victor, ouvir o mesmo de uma moribunda condenada ao inferno tinha sido a gota d’água para provocar sua ira. O fazendo ser imprudente mais uma vez.

Primeiro tinha sido negligente ao abandonar o corpo morto de Tom. Ter se irritado com a garota Imaculada o fez esquecer dos procedimentos, se lembrando de dar um fim àquele corpo apenas no dia seguinte, quando a polícia já o havia encontrado e investigando a cena do crime.

Agora, havia sido tão apressado em se livrar de Mercedes, que além de deixar o corpo para trás, provavelmente devia ter deixado marcas da alma removida no corpo. Porém, mesmo tendo retornado para concluir o serviço corretamente, já era tarde, pois uma ambulância levava o corpo para a autopista.

Guerrard procurou Lúcia pelo convento e seus arredores, mas como não a encontrou, fechou seus olhos para sentir onde ela estava.

Solitário e frio… Um cheiro pungente de poluição pútrida como um esgoto… Cadeiras e um enorme vão no chão… Foi então que ele viu em sua mente uma placa escrito “CPTM” e ouviu uma voz distorcida dizendo “Granja Julieta”.

Ele agora sentia onde ela estava, uma estação de trem CPTM, se surpreendendo ao perceber a distância já percorrida pela garota.

Um piscar de olhos e já estava ao lado dela. Lúcia estava sentada olhando para o vão do trem distraída, tentando se livrar das lembranças de ver duas pessoas morrerem ao terem suas almas removidas. Aquilo lhe deu um certo incômodo, mas Guerrard ignorou e se sentou ao lado dela.

“É ele…” o reconhecimento estampado nos pensamentos dela lhe deu um pouco de uma estranha satisfação.

— Estou surpreso. Como conseguiu chegar aqui tão rápido? – perguntou Guerrard sem olhar diretamente para ela.

— Um colega me deu carona. – Lúcia respondeu com desânimo.

Um colega? Teria sido o cara irritante que estava com ela no colégio?

Por algum motivo pensar naquilo o incomodava ao mesmo tempo que o irritava, mas era uma raiva diferente, ela apertava algo dentro de seu corpo e era extremamente incômoda, ao mesmo tempo que frustrante, pois ele não entendia direito porque se sentia daquele jeito.

— É o mesmo otário que encontrei mais cedo?

— Isso importa? – respondeu a garota em um forte tom ríspido e irritado.

— Que atitude é essa? – rebateu Guerrard ao se irritar com o tom de voz dela.

— Não é nada… – ela abaixou a cabeça. – O que mais quer que eu faça pra você hoje?

Estranhamente, vê-la se recolher daquela forma o deixou desconfortável. No entanto ele ignorou aquela sensação ao se lembrar que queria logo resolver aquela aposta que havia feito com Victor. Era algo simples. Não precisava demorar uma eternidade com aquilo.

— Eu já te disse mais cedo. – disse Guerrard se levantando para ficar de frente com a garota – Quero que me conceda um beijo.

— O que?

De novo ela reagia daquele jeito, como se ele tivesse pedindo para que ela pulasse de um precipício. Era tão surreal assim pedir aquele tipo de coisa? Ele via os humanos se beijando e fazendo coisas muito mais indecentes a torto e a direita. Por que ela fazia aquilo parecer algo terrível? Ainda mais ao pensar que ele poderia tirar aquilo dela a qualquer momento.

— Nah! Quero que faça por vontade própria. – respondeu o demônio.

— Oi? – ela o encarou com incredulidade e espanto – Do que você está falando? Eu nunca que o beijaria por vontade própria. Eu não sinto nada por você que justifique um gesto desse.

E mais essa agora!? O que ela queria dizer com aquilo?

— E vocês humanos precisam de motivo pra isso? – questionou Guerrard um pouco impaciente – Não é o que vejo por aí.

— Algumas pessoas não tem critérios. Eu tenho! – respondeu Lúcia.

— Ah, é? E qual seriam os seus?

Lúcia não respondeu de imediato. E aquele pouco tempo em que ela hesitou em responder pareceu uma eternidade, principalmente porque Guerrard podia ouvir a mente dela borbulhar em lembranças dos momentos em que esteve com ela, a torturando com seu assédio. Nas ocasiões que havia feito aquelas coisas parecia divertido provocá-la, mesmo que depois se sentisse impedido de fazer mais e acabava partindo irritado. Mas agora, ao ver a forma como ela se lembrava daquilo, um misto de desconforto, nojo e raiva se fazia presente em seu ser. Era muito estranho sentir aquilo. Era revoltante. Irritante. E…

— Não beijo pessoas que não amo. – respondeu Lúcia sem se importar com o que aconteceria, afinal, já se sentia condenada mesmo.

Aquilo fez Guerrard se despertar dos pensamentos que a hesitação dela havia provocado, mas não foi capaz de dizer nada de imediato.

No meio tempo, um vagão de trem chegou, desceram passageiros, subiram outros. No fim de toda movimentação, a plataforma ficou vazia, apenas Lúcia e o demônio estavam nela.

Guerrard calculava que ganhar a aposta que fez com Victor seria mais difícil do que desejava. Talvez a sugestão de deixar a moça em paz fosse de fato melhor, mas ele queria quebrar aquele jeitinho casto daquela garota. Queria que ela parasse de provocar aquelas coisas estranhas nele. Ele queria corrompê-la. Maculá-la. Acabar de vez com aquela sensação irritante de que ela, de alguma forma, nunca seria dele. De que aquela alma não lhe pertencia e nunca se mancharia. Apagar aquela luz que parecia o cegar e fazer com que ele tivesse atitudes imprudentes.

Foi então que uma ideia lhe veio, tão clara como a lua naquela noite.

— E se eu lhe oferecer sua liberdade? – disse Guerrard abrindo um sorriso maquiavélico.

— Como? – Lúcia foi pega desprevenida com a oferta – E como ficam Suelen e Heliot?

— Sei lá. O que importa? Você estaria livre, ora pois.

— Eles vão se machucar?

Ela insistia em querer saber se a família ficaria bem, e aquilo era muito irritante. Por que ela não podia ser como os outros humanos e apenas aceitar suas propostas?

— Como é que eu vou saber? – ele respondeu irritado – Não terei obrigação de mantê-los protegidos. Por que raios preciso me preocupar com isso?

— Então nada feito. – respondeu Lúcia cruzando os braços.

— Como?

Estava ali o lance de mártir que Victor havia dito. A maluca preferia continuar sofrendo nas mãos dele e manter os parentes seguros, do que voltar a ser livre.

— Você ouviu o que eu disse? Estou lhe oferecendo sua liberdade em troca de um mísero beijo. E você só está preocupada com aqueles dois? – questionou o demônio incrédulo.

— Se o beijo é tão mísero, porque faz tanta questão? – Lúcia o encarava nos olhos.

Guerrard já estava ficando muito irritado com aquela garota. Como era possível existir alguém tão idiota a ponto de colocar princípios morais tão frágeis, acima de sua própria liberdade?

Lúcia era realmente diferente.

Aquela estranha sensação apaziguadora de familiaridade que sentiu ao toca-la naquele beco imundo, já havia denunciado que ela era mais que uma mera alma imaculada. Ele só precisava descobrir o que exatamente era aquilo que a diferenciava dos outros humanos.

— Ok, se amar a pessoa que vai beijar é então importante, então me explique o que é isso.

— Explicar o que? – era perceptível a confusão no olhar dela.

— Esse tal de amor. – respondeu Guerrard com impaciência – Não sei se você se lembra, mas eu sou um demônio. Sentimentos como esse, são basicamente inexistentes em minha espécie.

Lúcia olhou estranho para ele. Ela tentou esconder sua surpresa, mas Guerrard sabia exatamente o que se passava naquela cabecinha profusa. E estranhamente, o suposto desconforto que ela sentiu ao ouvir aquelas palavras, também se fez presente nele, mesmo que em uma proporção bem menor, mas o suficiente para ser irritante sentir aquilo, sem entender o motivo.

— Não dá pra explicar o que é o amor.

Sério!?

Guerrard se perguntava porque ainda perdia tempo conversando com aquela garota incoerente.

— E como você sabe que sente algo, que sequer sabe explicar o que é?

— Não se sabe, apenas se sente.

Chega!

— Você tem noção da asneira que tá falando? – retrucou Guerrard irritado – Isso que diz não faz sentido. Me parece que esse lance de amor é mais uma de suas desculpas arbitrárias, que vocês humanos usam para justificar seus atos. Como pode ter certeza que não sente algo por mim?

— Mas eu sinto algo por você. Medo e raiva. Não é isso que quer que eu sinta? Pois é só o que sinto. E eu sei que nunca seria capaz de amar alguém desprovido de sentimentos. Um ser que seria incapaz de retribuir o amor que eu sentisse.

Aquelas palavras doeram. Guerrard disse que, por ser demônio, ele era desprovidos de sentimentos, mas aquilo não era completamente verdade. Ao menos não para ele. Tinha nascido humano. Ele teve sentimentos por sua mãe. Mas isso foi há tanto tempo… Tinham sido tão bem deteriorados no Inferno… Que ele acreditou ter se tornado desprovido dessas coisas.

Mas estava evidente que ele não estava certo sobre aquilo, além de não querer acreditar que era verdade.

Furioso, Guerrard fez menção de que iria dar um tapa em Lúcia, e por reflexo ela enrijeceu os músculos do rosto e fechou os olhos, mas o tapa não saiu. Ele não conseguia bater nela. No fundo, não sentia sequer vontade de agredi-la, mas sua raiva o tomou… E falhou…

Antes que ela voltasse a abrir os olhos, ele decidiu partir, correndo furioso pela Umbra. O que resultou em algumas distorções e interferências no plano físico, mas ele pouco se importava. Mesmo que um trem perdesse seu eixo de equilíbrio só por se chocar com sua aura furiosa.

Nunca se importou com essas coisas. Por que se importar agora?

Guerrard tinha que admitir que aquela garota o tirava do controle com uma certa facilidade. Não que ele fosse a criatura mais controlada do mundo… Nem de longe isso seria verdade… Mas por algum motivo, as ações de Lúcia lhe provocavam sensações que ele não compreendia, e sua única reação a elas era a raiva, pois era a única emoção que conhecia muito bem. No entanto, se queria acabar logo com aquela aposta estúpida, ele percebeu que precisaria ser um pouco mais paciente e conter sua raiva.

 

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