CAPÍTULO 4

Como se já não bastasse o tédio, a voz irritante de Victor rodeando sua mente com as insinuações de que ele, Guerrard, Príncipe do Inferno, filho do Primeiro Demônio, estaria… Gostando, da garota imaculada, estava para levar sua curta paciência ao limite da explosão.

Era ridículo!

Só porque ela o fazia sentir coisas diferentes e estranhas, significava que ele gostava dela?

Isso não fazia o menor sentido!

Ele detinha o poder sobre o corpo e a alma dela, isso por si só era um tipo de pacto inédito, que ele teve a ideia de fazer… Por que mesmo?

O que importa o motivo!? Ela lhe pertencia, PONTO! Por que raios era preciso classificar o porquê dele querer vê-la, dele exigir que ela não se envolva com outros homens, que ele fique…

— Mas que MERDA! – gritou Guerrard se levantando furioso do sofá e o chutando.

O sofá voou até o outro lado do cômodo e se espatifou em milhares de pedaços, deixando um monte de destruição no lugar da ex-mobília e espalhando estilhaços por todo lugar. E antes que pudesse se dar conta, estava na casa de Lúcia.

Quando havia decidido ir para lá, Guerrard não saberia dizer, tanto menos conseguiria explicar como foi parar lá tão rápido e do outro lado do véu da Umbra. Mas uma coisa era certa, ele ficou surpreso ao ver que Lúcia se esforçava para continuar a viver normalmente, mesmo com a dor. Ela inclusive a provocava para entender até onde aquela marca amaldiçoada a impediria de parecer normal com o resto do mundo.

Ela preferia sofrer sozinha e ver que os outros ao seu redor estavam bem, à se preocupar com a própria dor.

Tola!

— Credo! And, por acaso você tá roubando sorvete do freezer de novo? – gritou Heliot para o amigo – Tia Gui já tá terminando o almoço.

— Tá doido cara? Eu estou aqui… – respondeu o rapaz que descia a escada.

— U é! O que…?

O demônio então teve sua atenção roubada pelo garoto que olhava fixamente para onde ele estava, procurando algo que não tinha certeza se estava ali. Guerrard percebeu que sua raiva estava distorcendo o ambiente ao seu redor novamente, tal como havia sido com o trem, e o garoto sentiu por estar perto dele.

Era um desperdício continuar ali. Nunca entenderia a garota imaculada. De nada adiantaria perder mais tempo ali, vendo ela tentar entender porque aquele otário, que roubou um beijo dela, a fazia sofrer mais. Tudo aquilo era uma perda de tempo!

Novamente sem sentir, Guerrard se viu mudar de lugar novamente. Agora porém estava no meio de uma espécie de floresta, no meio de sabe-se lá onde. A raiva que Guerrard passava a sentir naquele momento estava se externando em tentáculos de energia sombria e se espalhando pela mata, que começam a se deteriorar com sua presença.

— Merda! – gritou ele furioso, socando uma enorme rocha até pulverizá-la – Ela… – ele arranca pedaço de algumas árvores com as garras – Por que ela…?

Guerrard não estava sabendo lidar com o que sentia. Era tudo muito estranho, fora de qualquer coisa que ele poderia chamar de “zona de conforto”. A cada vez que ele voltava a ver Lúcia lutando para continuar sua vida, se esforçando para manter aquilo que protegia sua família, e não mudando em nada a pureza de sua alma imaculada… Tudo isso o deixava confuso, por consequência, irritado.

Mais uma vez um grito furioso, que podia muito bem ser confundido com um rugido, irrompeu pela garganta do demônio, que continuava a descontar sua raiva e frustração na vegetação.

— Melhor acabar logo com isso… – murmurou Guerrard enquanto parava o acesso de fúria – Isso! Já perdi muito tempo com aquela… É isso. Tá na hora dela morrer…

Foi então que do fundo da floresta, ele pode ouvir algo se aproximando. Eram passos velozes e frenéticos. Certamente de algum animal caçando, ou no caso, vários animais caçando. Guerrard deixou que a presença ao seu redor roubasse sua atenção, ajudando a conter sua raiva, permitindo-o se controlar, mas não eliminando aquele sentimento que lhe era tão corriqueiro.

— O que temos aqui? – disse uma voz meio rouca.

— Vejam essa destruição! – rosnou outra voz.

— Cuidado! Pode ser um DELES. – grasnou uma terceira voz.

Guerrard estava cercado por todos os lados. Eram lobos enormes que vasculhavam a região a procura de caça, mas se depararam com a pequena clareira de plantas mortas e destruídas, criadas pelo demônio em fúria. Eles tagarelavam em seu dialeto, mas como demônio, qualquer língua, mesmo as mais antigas, lhe eram compreensíveis. Logo, Guerrard pode perceber que aqueles não eram simples animais. Eram lobisomens, e não estavam felizes com sua presença ali.

— Não é possível que esse humano tenha feito tudo isso! – reclamou uma das feras.

— Não é um humano, seu imbecil. Não sente esse cheiro? – rosnou o lobo maior – É uma criatura maldita!

Criatura maldita… Será que…?

— Por que vocês não calam a PORRA da suas bocas, e vão embora daqui! – rugiu Guerrard se irritando com seu último pensamento.

— O que? Ele nos entende! – se espantou um dos lobos.

— Saia daqui MONSTRO, ou não teremos piedade em dar um fim à sua vida! – retrucou o lobo maior.

Guerrard riu com escárnio.

— Vida… – os olhos dele começavam a brilhar, e as sombras a envolvê-lo, mudando sua aparência de humana para a bestial demoníaca – Deveriam se preocupar com a de vocês!

— Alfa! O que é isso?! O que é essa criatura?

Não houve mais diálogo depois daquilo. Guerrard deixou seu ódio falar por si, tentando afogar sua confusão e os estranhos sentimentos pela garota de alma imaculada. Ele deixou seu animal interior lhe dominar e trucidar o que estava ao seu redor, quebrando ossos, dilacerando carne e devorando almas…

A alguns passos dali, um lobo menor estava a espera de seu bando. Era sua primeira experiência naquela pele e em meio a natureza, por isso foi deixado de lado pelos companheiros. Porém, ao som do primeiro ganido de dor, o instinto fez com que o pequeno lupino corresse para auxiliar sua matilha, mas ao chegar até eles, apenas viu uma enorme besta negra, feita de sombras, sobre os cadáveres de seus amigos, devorando uma espécie de esferas de brilho prateado que pairava sobre os corpos. A cena lhe provocou um gélido arrepio, e o corpo congelado pelo choque, passou a correr em fuga na direção oposta.

As quatro patas eram velozes, mas a forma de lobo não era a que tinha mais familiaridade, logo, depois de algum tempo, o lupino mudou para sua forma humanoide, revelando que na verdade se tratava de uma fêmea ainda jovem.

A garota era hábil com as pernas, mas a floresta ainda era território novo para suas habilidades, se demonstrando traiçoeiro quando subestimado. Sem perceber, a jovem acabou tropeçando em uma raiz e caindo em uma clareira, rolando e ralando a pele desprovida de vestes ou proteção na queda do barranco, apenas parando ao chegar no fundo, desacordada.

O demônio não havia permitido que a sua última presa fugisse. Havia anos que não caçava e se alimentava daquela forma. Apenas as bestas infernais ancestrais é que eram capazes de devorar almas, mas ele, por ser filho de quem era, também podia fazer aquilo, no entanto, assim que descobriram que ele podia se alimentar das almas daquela forma, o proibiram de fazer o mesmo, uma vez que a alma se perdia por completo dessa forma, se misturando à própria essência do príncipe demoníaco, ao invés das sobras integrarem as forças do Inferno. Era um excelente meio de aumentar seu poder, mas com isso, não haveriam remendos de almas para gerar novos demônios.

Ao se aproximar do local da queda da garota, Guerrard saltou para cair literalmente de boca em sua última presa, mas ao se aproximar e ver um corpo desprovido de roupas, com pele clara e cabelos negros que se ondulavam escondendo o rosto, ele se petrificou.

A imagem de Lúcia se remontava em sua mente. Não era ela. Ele sabia que não era ela. Mas sua mente o fazia acreditar que era ela. E diferente da decisão que havia tomado… Guerrard não conseguiu matar a garota. Para piorar, ele também não conseguiu mais se manter em sua forma bestial, voltando a ser o homem de antes. O homem que não tinha mais certeza do que queria.

A garota abriu os olhos, e ao se deparar com o olhar amedrontado, de ires claras e cristalinas, a presença de Lúcia se fez muito mais forte em sua mente, e Guerrard decidiu partir, levantando voo e abrindo uma fenda que o levaria dali.

Victor tinha razão em um ponto… Era melhor deixar a garota em paz.

 

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